terça-feira, abril 04, 2006

Ao passante

"Pessoas pertencidas de abandono me comovem: tanto quanto as soberbas coisas ínfimas" (Manoel de Barros)
levantei sob o susto da presença fantasmagórica do chinelo dele rondando a casa. eu que mantive todo o chão limpo, sagrado ofício, para as pisadas cortantes e terrivelmente macias dos pés incautos . há o que fazer! ouvi gritos. os pesadelos constantes em uma tarde chuvosa, enquanto ouço passos seguidos de uma respiração cansada e entediante - um ritmo e um verso em branco que não foi lido nos saraus das noites sem vinho. permaneci atenta ao silêncio que emudecia, que soprava medos e suscitava alucinações. continuava com as pegadas dadas pela sala, enquanto eu solfejava uma canção sem o ritmo do silêncio. eram 3h da manhã, nem havia limpado os cômodos, mas os pés teimavam em sapatear na minha memória, conferindo ao passante a materialidade que os assombros parecem ter. distração com uma foto em preto e branco vestido era o que eu usava enquanto sorria timidamente ao meu observador. mais uma vez, tomava a penúltima xícara de café da noite e olhava pela janela os passos dos que já foram e continuam seguindo. parei de solfejar, coloquei calculadamente a xícara sobre a TV que chiava, calcei os sapatos que ganhei do homem que pisava o chão limpo com meu tédio e saí procurando, pela noite, as pisadas que escutara durante toda a vida. porque o meu, esses dons que crescem em árvores, era esperar contar os passos até o sono apossar-se do corpo e o sonho compreender a despalavra.

6 comentários:

Anônimo disse...

, então houve-se. passos. pegadas. pássaros em o silenciar. ah! e despalavras tão bem...
|beijos meus|

Anônimo disse...

ah, a bendita penúltima xícara de café da noite,quem dela não já se socorreu, mesmo sendo em vão...
abraço

Anônimo disse...

saber esperar é um dom. assim como o silêncio de cada um. "sei uma reza pra ficar invisível no ônibus de volta pra casa". a sobrevivência em dias de gente com pedaços a faltar nos corpos resulta em pessoas mais livres e mais bonitas, podes crer, baby...

Unknown disse...

a insônia na madrugada, emprenhando o silêncio com as sombras mais desajustadamente íntimas do ser... é por isso que os fantasmas não são vistos de dia

Anônimo disse...

entre os cômodos, existem quadros e pensamentos que nos observam. prefiro não olhar no espelho à noite, pois imagino que o brilho dos olhos está diferente e sei que está

C G M disse...

você é uma pessoa q sempre me comove, Jana. è sempre bom saber q aida se pode encontrar irmãos de alma por ai. chêro